Mulheres e entomologia: os caminhos desafiadores e a importância da representatividade

Na primeira metade da década de 1990, quando a hoje professora da Universidade da Flórida Silvana Paula-Moraes cursou seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Entomologia, em Viçosa, ela tinha a companhia de algumas colegas mulheres e apenas uma professora, a ainda hoje orientadora do programa Terezinha Maria Castro Della Lucia. “Ela era a única, e foi muito bacana tê-la por perto. Ela tinha já naquela época muita experiência, e isso era inspirador”, conta Silvana. De lá pra cá, muitas outras grandes cientistas passaram pelo programa, e outras chegaram para assumir postos de professoras e orientadoras. Historicamente, cerca de 40% das vagas ofertadas em ambos os cursos, de mestrado e doutorado, são preenchidas por estudantes mulheres, que não só contribuem com dissertações e teses de grande impacto, como também levam o nome do programa aos grandes debates acadêmicos e principais mercados do mundo todo. 

“Não posso dizer que é fácil, tenho muito respeito por todos os desafios que nós mulheres enfrentamos, mas a gente vai achando o nosso caminho, nos associando com pessoas e oportunidades que nos dão a capacidade de ir adiante”, acredita Silvana, que depois do mestrado atuou como fiscal do IMA, chefiou o serviço de análise de riscos de pragas no Ministério da Agricultura, assumiu vaga de pesquisadora da Embrapa, cursou doutorado na Universidade de Nebraska e desde 2016 é professora da Universidade da Flórida. “Eu vejo muitas coisas boas sendo feitas. Vejo que barreiras que eram tão presentes no passado, com papéis tão definidos, estão diminuindo e as mulheres estão ocupando seus espaços”, ela diz, destacando a importância da rede de apoio que teve desde o início da carreira, ainda em Viçosa – não só de sua família, mas também dos colegas de trabalho. “Ninguém entrega grandes resultados sozinha, é importante dizer. A gente tem sempre que colaborar uns com os outros, umas com as outras. Aqui nos EUA, colaboração é uma palavra chave. Ninguém está esperando que você vá ser o super gênio, que vai descobrir tudo sozinha. É sempre com colaboração, uma equipe de pessoas que juntas conseguem entregar soluções.”

É assim que trabalha Madelaine Venzon, orientadora do PPG e pesquisadora da Epamig. Com um time de colaboradores e, principalmente, colaboradoras, ela coordena projetos diversos voltados para o controle biológico e alternativo de pragas envolvendo não só os laboratórios da UFV, mas também ações da Epamig em diversas cidades da Zona da Mata. “Tive e tenho a satisfação de orientar grandes mulheres, de fibra, companheiras. O grupo atual que eu oriento tem mulheres fantásticas”, diz ela, citando as alunas Elem Martins, Jessica Botti, Mayara Franzin, Fernanda Pereira, Jessica Martins e Carolina Calderón. “Elem, que foi minha estagiária, bolsista, orientanda de mestrado e hoje cursa o doutorado é um exemplo de garra, entusiasmo, dedicação e cuidado extremo na condução dos experimentos”, destaca a pesquisadora, que aparece na foto acima com as alunas Elem, Jessica e Mayara.

“Fazer ciência é desafiador no Brasil, não só para mulheres”,  avalia Madelaine, que no ano passado passou a integrar também a comissão de coordenação do PPG. “Gastamos muito tempo em atividades burocráticas e correndo atrás de recursos para trabalhar, tanto financeiros como logísticos. O desafio que vejo para as mulheres é o equilíbrio da vida profissional e pessoal, para que não sejamos vítimas da autocobrança exagerada.”, diz a professora, reconhecendo a importância de um “olhar feminino” para as questões diversas do programa. “Quando eu fui escolhida (para a comissão), a principal razão apontada foi o fato de eu pensar no coletivo, mais do que ser mulher. Mas de fato, o olhar feminino para as questões do programa contribui para uma discussão mais ampla dos assuntos”. 

Juliana Vieira está em Ghent, na Bélgica, para a etapa internacional de seu doutorado

Mais espaço
Ainda hoje, apesar do crescimento da representatividade e dos inúmeros exemplos de sucesso, a desproporção entre os espaços oferecidos a talentos de homens e mulheres exige atenção. “A minha percepção é que está ocorrendo uma mudança gradual na inserção e no prestígio científico de mulheres na Academia. Entretanto, há muito ainda para ser feito”, avalia Juliana Vieira, que desde setembro realiza, na Universidade de Ghent, na Bélgica, a etapa internacional de seu doutorado. Em 2019, Juliana foi eleita representante discente do programa e teve, segundo conta, ricas oportunidades de refletir sobre a questão de gênero na Entomologia. “Acredito que a realidade para uma mulher na Entomologia depende muito da atividade que ela desempenha. Mulher dentro de um laboratório é uma coisa, mulher no campo é outra bem diferente.” Na visão dela, o laboratório tende a ser menos hostil, mas ainda é comum a redução das mulheres às habilidades manuais. “Da mesma forma que existem mulheres com habilidades manuais para manejar bem uma pipeta, existem mulheres com habilidades de gestão, oratória, organização e liderança. E dentre as mulheres que eu vi manejando bem uma pipeta, sem dúvidas, todas elas discutiam hipóteses ainda melhor.”

A professora Karla Yotoko, que em 2019 esteve à frente, junto com outras mulheres, do I Fórum Mulheres na Universidade e o Machismo Nosso de Cada Dia, realizado na UFV, conta que foi tomando consciência aos poucos, ao longo de sua carreira acadêmica, das dificuldades e desafios enfrentados pelas cientistas mulheres. “Durante a faculdade eu não enxergava essa realidade. Mas fui abrindo os olhos, tive algumas alunas que me inspiraram muito ao longo do tempo, e fui vendo que o machismo está aí, o tempo todo”, destaca ela, que é professora do Departamento de Biologia Geral e uma das orientadoras do PPG. Karla chama a atenção para o conjunto de sistemas, métricas e parâmetros de carreira que foram, em sua maioria, criados por homens, em uma realidade muito diferente da que vive a maioria das mulheres. “Eu admiro muito quem consegue passar por todas essas questões e se destacar na carreira”, diz a professora, que é coordenadora do Laboratório de Bioinformática e Evolução. 

A professora Maria Augusta Lima, que integra desde 2019 o corpo de orientadores do PPG, recebeu o selo Top 100 in Ecology 2018 como autora de um dos artigos mais acessados no Scientific Reports, periódico do grupo Nature. Para ela, o maior desafio vivido hoje pelas mulheres cientistas é justamente “conciliar condições de trabalho que foram criadas, globalmente, para atender a uma rotina masculina. Geralmente, homens, ainda que sejam pais zelosos, não enfrentam grandes problemas para acordar cedo após passarem as noites cuidando e amamentando um bebê. Quando isso acontece, geralmente é pontual. Para as mães, é uma regra”, diz ela, destacando os efeitos ainda mais desafiadores do atual contexto de pandemia. “A casa se transformou em escola, parquinho e clube para as crianças, e extensão da universidade para mim. Só consigo fazer meu trabalho porque tenho um companheiro que divide a rotina de casa e família comigo.” 

Maria Augusta recebeu o selo Top 100 in Ecology 2018 como autora de um dos artigos mais acessados no Scientific Reports, do grupo Nature

Maria Augusta admite que os espaços ocupados por mulheres podem estar crescendo, mas chama a atenção para o longo caminho que ainda temos a percorrer. “Atualmente oriento seis estudantes na graduação e pós, sendo 5 mulheres. Entretanto, empregos bem remunerados e em postos de comando ainda são raros para mulheres entomologistas na maioria das vezes, apesar de haver igualdade salarial na área acadêmica”, ela pondera. 

Representatividade
“Eu consegui me inserir em atividades que eu considerava relevantes para a minha formação, independentemente do meu gênero, mas claramente existem cenários que consideram homens mais capazes do que as mulheres, principalmente em trabalhos que requerem atividades de campo”, diz Jéssica Martins, uma das discentes citadas pela professora Madelaine Venzon. Jéssica, que concluiu o mestrado e inicia agora a etapa do doutorado, diz que tem a sorte de ter a oportunidade de ser orientada por uma mulher. “Tenho plena ciência do peso que esta escolha tem em minha formação. Apesar de ainda termos um percentual pequeno de orientadoras dentro do departamento, acredito que a excelência dos trabalhos prestados por estas mulheres se destaca”. A discente Thayna Raymundo, que participa com Jéssica do Grupo de Estudos Insectum, também defende a importância da representatividade, que faz com que outras mulheres, que pensam em fazer ciência, se sintam representadas e encorajadas. “Neste sentido, as mulheres do nosso programa também têm feito trabalhos de excelência e inspiração.” 

Maria Augusta, que foi aluna dos cursos de mestrado e doutorado do PPG antes de se tornar professora do programa, destaca a importância que o convívio com outras professoras, hoje colegas, tiveram na sua formação. “Destaco o trabalho que a professora Maria Goretti Oliveira realizou na área administrativa, a dedicação da doutora Madelaine Venzon aos trabalhos de campo, particularmente difíceis para mulheres, as ideias inovadoras da professora Karla e homenageio a professora Terezinha, que foi uma mulher pioneira na Entomologia e exímia educadora.”

Fotos 1 e 2: Arquivo Pessoal
Foto: Rodrigo Carvalho Gonçalves

One Comment on “Mulheres e entomologia: os caminhos desafiadores e a importância da representatividade

  1. Matéria maravilhosa, que acima de tudo exalta a colaboração! 10!
    Divulguemos para que o mundo tenha a oportunidade de saborear a boa notícia, o bem feito!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *